«Que maneira a nossa
de usar as coisas!
Fica-nos sempre a maçaneta
na mão!»
Alexandre O'Neill
VIEIRA, Alice, et al., O Código d' Avintes, Oficina do Livro, 2006, p.219
A letreiratura desta semana deu espaço mais uma vez a um original escrito na lusa língua. Numa visível paródia a um dos maiores best-sellers deste século, O Código d'Avintes é um conjunto de textos de sete autores: Alice Vieira, João Aguiar, José Fanha, José Jorge Letria, Luísa Beltrão, Mário Zambujal e Rosa Lobato de Faria. O livro foi escrito na técnica de estafeta: cada autor escrevia uma tranche do texto, pelo que a certa altura a preocupação foi, segundo os próprios, encalacrar o senhor que se seguia.
O resultado é um romance muito interessante que tem como centro um assassinato com a prata da casa (uma broa d'Avintes) cheio de suspense, armadilhas e muito humor.
Além dos demais motivos para ler, cada capítulo é inaugurado com um poema de autor de expressão em língua portuguesa. O acima transcrito é o responsável pelo capítulo XV.
Abaixo podem desfrutar de uma das passagens a que demos tempo de antena no último Galeria.
«Se eu tivesse noção, aquela pergunta chata - «Que queres tu ser quando fores grande?» - teria resposta pronta e consciente:
- Feio. Quero ser feio.
Hoje, admito que não gostaria de mostrar uma fronha como a do Isaías Pires mas entre o angelical e o medonho vai todo o espaço da trivialidade. Trivial, vulgar, corrente, banal, era justamente o que eu pretendia se pudesse agora escolher um rosto. No fundo, trata-se da humana ambição de encontrar a paz.
Nunca me foi concedida. Cansei-me de ouvir piroseiras como anjo e querubim e, já na faculdade, não me livrei o rótulo de Adónis. Pobre Adónis, o que ele penou nas unhas de Afrodite, Santo Deus!
Apolo. Também me chamaram Apolo, menos pela sabedoria que pela sugestão da estátua. Ai de mim, sou giríssimo dos pés à cabeça! E a perfeição paga-se caro. Nas ruas, nos restaurantes, na pastelaria que frequento, em qualquer lugar público, sinto-me despido por olhares libidinosos. Em tempos não distantes - conta o meu tio Bráulio, que vai nos setenta - experiências tais só as viviam mulheres exuberantemente belas. As coisas mudaram e ainda bem. Eu sou pela igualdade de direitos. Ou há vergonha ou comem todos.»
VIEIRA, Alice, et al., O Código d' Avintes, Oficina do Livro, 2006, p.83
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