«Primeiro parece fácil, é o coração que arrasta a cabeça,
a vontade de ser feliz que cala as dúvidas e os medos.
Mas depois é a cabeça que trava o coração,
as pequenas coisas que parecem derrotar as grandes,
um sufoco inexplicável que parece instalar-se onde dantes havia a intimidade.»*
Cá está na vitrina da Pastelaria a letreiratura da semana, pouco pontual e nem sempre assídua.
Se eu optasse pela escrita em Portugal escolhia como pseudónimo um composto de três nomes que começasse com Miguel. Parece-me que é meio caminho para o sucesso. Imprime um certo carisma aos escritos. A gente olha «e tal» e vê Miguel bla bla bla «e tal», compra «e tal» e gosta.
Esta semana trouxe um senhor que tem na árvore genealógica tal peso que enveredar pela arte da pena foi simultaneamente um risco e um processo quase inevitável. Afinal ser-se filho da excelentíssima Sophia de Mello Breyner Andresen não é para qualquer BI.

Miguel Sousa Tavares tirou da prensa Não te deixarei morrer, David Crockett, uma colecção de crónicas (já publicadas dispersamente ou nem por isso), em 2001 e nós acolhemo-lo na Galeria neste fim de semana com o alto patrocínio de uma casa do fim do mundo. Do que fomos beliscando aqui e ali durante o programa trazemo-vos agora uma pequena amostra. Apreciem e... voltem sempre.
«Saiu do hospital dez dias depois e lentamente retomou a sua vida. Era uma sensação estranha estar de regresso ao mundo dos outros e que agora voltava a ser também o seu, caminhar no meio dos outros, ouvi-los a falar, rirem-se ou queixarem-se da vida, e de novo ele sentia, como na sala de reanimação a sensação de ser um semi-ausente, vendo os outros de fora, como um espectador. Ao cabo de um mês desta difícil adaptação, decidiu-se por mandar um ramo de flores à médica dos olhos azuis, com um cartão onde escreveu: «Trazer-me de volta à vida foi um trabalho bonito, mas incompleto. Não quererá você completá-lo?»
TAVARES, Miguel Sousa, Não te deixarei morrer, David Crockett, Oficina do Livro, Lisboa, 2001, p. 97
* Miguel Sousa Tavares, idem
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